United World Project

Watch

As palavras são importantes

 
24 dezembro 2021   |   Internacional, ,
 

Há poucas semanas, o vazamento do documento preliminar que propunha diretrizes para uma comunicação inclusiva na Comissão Europeia gerou uma série de polêmicas na Itália e na Europa sobre uma suposta tentativa de “cancelar” o Natal.

O documento foi intitulado “#UnionOfEquality – European Commission Guidelines for Inclusive Communication” (#União pela Igualdade – Diretrizes da Comissão Europeia para uma Comunicação Inclusiva). A passagem incriminada foi encontrada na seção dedicada a “culturas, estilos de vida ou crenças”.

Depois de ter sugerido evitar «presumir que todos são cristãos» e considerar «que as pessoas têm tradições religiosas e calendários diferentes», entre os exemplos de expressões a serem evitadas de dizer ou escrever estava: «O período natalício pode ser estressante». Com a sugestão de substituí-lo por: «O período das festas pode ser estressante». Um termo genérico, “festa”, em vez de “Natal”, em suma.

Apesar das possíveis polêmicas, a questão nos leva a refletir. Acreditamos que só assim, substituindo as palavras que remetem a momentos fundamentais de uma cultura ou religião por sinônimos amorfos, é possível chegar a uma inclusão real entre os diferentes? Como podem palavras antigas, com raízes profundas, ajudar a construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva, sem necessariamente ter que as “cancelar”?

Ao absorver e compartilhar as histórias que hospedamos neste portal, aprendemos que as diferenças não são um obstáculo, mas que podem se tornar uma oportunidade de reflexão, de maior compreensão, de enriquecimento mútuo e, se acolhidas, podem contribuir para a construção de uma sociedade realmente inclusiva. Assim também com as palavras, se forem ouvidas.

Compartilhamos nossos questionamentos com alguns dos protagonistas dessas histórias: Haifa Alsakkaf, uma muçulmana ítalo-iemenita, diretora da organização sem fins lucrativos Good World Citizen; Roberto Catalano, italiano, cristão católico, especialista em diálogo inter-religioso, professor do Instituto Universitário Sophia; Silvina Chemen, argentina e rabina da comunidade judaica “Bet-El” de Buenos Aires. Estas são as contribuições que oferecemos para enriquecer a reflexão de todos.

Haifa Alsakkaf, diretora de Good World Citizen

As palavras são importantes, elas nos definem, são o nosso principal meio de comunicação. Frequentemente, o problema reside no fato de que muitos termos perderam seu valor real e se tornaram sons que se repetem sem que se conheça o significado. Mesmo palavras que carregam um significado religioso e espiritual muitas vezes são esvaziadas do sentido profundo que têm, tornando-se apenas um termo folclórico que ouvimos e repetimos em certas ocasiões. É errôneo tentar apagar essas palavras; na verdade, é necessário devolver-lhes todo o seu valor e significado. Eu acredito que ninguém se sinta ofendido ou discriminado se ouvir um “Feliz Natal” ou “Ramadan Mubarak” se souber o significado dessas palavras e o valor que elas carregam.

Uma sociedade inclusiva acolhe todas as pessoas com sua bagagem cultural, que também inclui muitas palavras que se referem a aspectos religiosos, culturais, linguísticos, relativos à identidade ou a outros fatores. Uma sociedade realmente acolhedora e inclusiva salvaguarda a singularidade de cada pessoa e torna significativa a experiência de cada um, bem como o fato de pertencer a uma comunidade ampla e multíplice. É necessária uma abordagem intercultural, em que haja um processo de troca de pontos de vista, aberta e respeitosa, entre pessoas e grupos diversos, em um espírito de compreensão e de respeito mútuos. É um encontro entre mundos ou pontos de vista diferentes, com o objetivo de nos conhecermos e cooperarmos para uma mudança positiva.

Já é um fato que vivemos em sociedades multiculturais e que todos estamos sujeitos a experiências e influências culturais diversificadas. Cada pessoa é portadora de muitas riquezas e valores e pode dar uma contribuição positiva para a sociedade e para as pessoas que a rodeiam e que encontram todos os dias. O encontro com o outro, com o sujeito que é diferente étnica e culturalmente, representa um desafio, uma oportunidade de debate e reflexão e, acima de tudo, uma vantagem e uma oportunidade de enriquecimento para toda a sociedade.

Roberto Catalano, especialista em diálogo inter-religioso, professor do Instituto Universitário Sophia

Também neste ano, com a chegada do Natal, as antigas polêmicas sobre os símbolos típicos do Natal cristão voltam: eliminá-los por respeito às novas presenças religiosas no Ocidente ou mantê-las?

A questão está destinada a perdurar e ser enriquecida por tensões e polêmicas. Isso porque na raiz desses mal-entendidos não estão tanto as identidades dos outros, mas as nossas. Convém sublinhar que, com os devidos problemas e questões relacionadas a eles, os migrantes ou aqueles que desde há muito se mudaram para o nosso continente têm uma identidade própria. Principalmente se forem muçulmanos. Somos nós, ao invés, que estamos bastante confusos. É interessante notar que efetivamente as várias propostas e controvérsias nunca surgiram de reclamações de “outros”, mas sim de pessoas e grupos locais ou em nossa casa. Normalmente surgem do mundo leigo – ou melhor, laico – ocidental que, em nome de um desejo aparente de garantir a integração social de grupos pertencentes a outras culturas e religiões, tende a achatar a identidade ocidental e suas raízes judaico-cristãs. Por trás dessas atitudes, não há nenhum respeito pelos outros, mas sim o desejo de mitigar o sentimento religioso. É a longa onda do legado proveniente do relativismo de marca iluminista. Diante dessas polêmicas e do clima que suscitam, as pessoas de outras religiões se sentem ainda mais desorientadas em nosso continente. Na verdade, falta a elas a possibilidade de ter referências claras.

Saber que estão em uma parte do mundo onde o nascimento de Jesus é celebrado não perturba. Vale levar em consideração que Jesus é um Profeta para o Islã. Por outro lado, essa clareza permite que os recém-chegados celebrem os próprios feriados, como o Ramadã para os muçulmanos ou o Diwali para os hindus, ou a miríade de outras festas da tradição judaica, budista, sikh e assim por diante, em plena liberdade e sem problemas. A identidade nunca é um obstáculo, especialmente se for acolhedora e aberta aos outros, aos que são cultural e religiosamente “diferentes”. O problema está em querer impor nossa identidade aos outros e com ela a própria cultura e religião. Exatamente o que o Ocidente fez durante séculos e, em certo sentido, continua a fazer ainda hoje com a cultura laica – ou como mencionei –, laicista, que não admite diferenças perante uma imagem aparentemente neutra em termos de religião. Sem saber quem eles são ou quem somos, é impossível ter relacionamento e diálogo. Portanto, tenhamos o cuidado de não nos enganar com falsos problemas que surgem de um profundo vazio de identidade que estamos padecendo no Ocidente.

Silvina Chemen, rabina da comunidade judaica “Bet-El” de Buenos Aires

Nos primórdios da comunicação social existe uma questão antiga que questiona se a realidade existe além da linguagem ou se a linguagem gera as realidades.

Naturalmente, eu nunca faço escolhas excludentes. E tendo a pensar que a linguagem afeta a realidade, dá força ao surgimento de novos conceitos, mas que, com a militância aplicada apenas à linguagem, nada se consegue.

A inclusão pressupõe a abolição de todas as barreiras e realmente abrir espaço para aquele “outro”, aquela “outra” que antes não era admitida como parte do nosso ambiente.

Incluir significa mudar a maneira antiga de fazer as coisas, aceitar a novidade da época, discutir o assunto em profundidade e se responsabilizar por uma decisão tão importante.

Quero dizer que a tentativa de mudar a linguagem coloca em evidência os nossos hábitos ao falar e escrever, os quais pressupõem realidades que precisam ser reexaminadas.

Em síntese, se a vida religiosa fosse mais igualitária em termos de direitos e vocações, não seria necessário mudar uma linguagem milenar e uma prática nascida em um ambiente heteronormativo e patriarcal do qual derivam histórias, personagens e rituais. Jesus, um homem, nasceu com uma missão que não era só para homens. Isso é o que precisa ser entendido antes de tudo.

Para construir uma sociedade realmente inclusiva, também por meio das palavras, é necessária uma mudança sincera de paradigma, o que, em muitas áreas, já está ocorrendo. A ampliação dos direitos das mulheres no mundo, suas lutas pelo acesso aos estudos e pela igualdade de oportunidades de emprego são conhecidas e estão dando frutos, embora não tanto quanto se esperava, até o momento.

O fato é que quando lutamos pela inclusão, o compromisso deve ser assumido com todos os excluídos. De que adianta abrir o sacerdócio às mulheres se os migrantes continuam a morrer em barcos no Mediterrâneo?

A mudança de paradigma envolve também um compromisso político decisivo para com uma educação inclusiva, uma política inclusiva dos meios de comunicação, uma gestão inclusiva do Estado e, logicamente, uma política econômica na qual nenhum setor seja relegado às periferias.

Infelizmente, são os setores mais excluídos que assumem as próprias lutas para proteger ou ampliar os direitos.

No entanto, uma sociedade verdadeiramente inclusiva é aquela que defende o interesse e o bem-estar de quem é discriminado, esquecido ou silenciado.

A luta pela igualdade de gênero não deve ser uma luta das mulheres.

A luta pela igualdade social e econômica não deve ser uma luta dos pobres.

A luta para se estabelecer em um país que os acolhe não deve ser uma luta dos migrantes.

A pandemia provou isso; o mundo inteiro adoeceu e não compreendemos que, se os países ricos continuarem a guardar para si as vacinas e os pobres continuarem a adoecer, não há rico que se possa salvar.


SHARE: