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Workshop

Câmera na mão: a favela contada de dentro para fora

 
28 outubro 2022   |   , ,
 

A trajetória do Grupo Pensar Cultural, que através do audiovisual oferece aos jovens da periferia do Rio de Janeiro, no Brasil, a oportunidade de contar suas próprias histórias

São ruas sem nome e casas sem número onde moram pessoas que, há gerações, vivem com poucos direitos fundamentais. O surgimento das favelas data ainda do século XIX, quando, após a abolição da escravatura no Brasil, uma migração em massa do povo recém liberto ocupou as áreas menos valorizadas da cidade: os morros, terrenos acidentados ou pantanosos. Quando um grupo de recém-formados em cinema pensou como poderia contribuir ativamente para o desenvolvimento de jovens que moravam nas favelas, surgiu uma ideia. Com câmeras, equipamentos de filmagem e um curso de noções básicas de audiovisual, eles ofereceram aos jovens do morro a oportunidade de contar suas próprias histórias.

“Era o final de 2008 quando um amigo da universidade, Tiago Gomes, falou dessa ideia de ter uma instituição que oferecesse o audiovisual como uma forma de produção de histórias que, quando vemos na tela, são contadas por terceiros e não por quem, de fato, vive essas histórias. Naquela ocasião, nós estávamos dando aulas na CUFA (Central Única das Favelas) e víamos que, quando eles produziam vídeos, os temas fugiam dos estereótipos da representação daquelas regiões. Na minha turma, os jovens produziram um vídeo sobre eleições, na turma do Tiago, o vídeo contava uma história de amor. Não tinha nada sobre violência, armas ou drogas”, conta Isabela Reis, uma das fundadoras do Grupo Pensar Cultural.

Um amigo envolvido no projeto e morador do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro (conjunto formado por 11 favelas, com quase 70 mil habitantes no total), sugeriu que as oficinas de audiovisual passassem a funcionar ali. “Na época, falávamos da câmera como uma arma”, lembra Isabela. A arma a que eles se referiam, porém, não tinha o poder de tirar vidas, mas de dar sentido a elas.

“O que mais me arrepia, hoje, é pensar que a gente não faz ideia de onde essa iniciativa chegou. No começo, eu olhava para o lado, via tantos problemas sociais, tanta diferença, e isso dava uma revolta, uma tristeza! E eu me perguntava: ‘Será que adianta mesmo isso que eu estou fazendo?’, ‘Será que essa proposta de trabalho vai impactar de alguma forma a vida dessas pessoas?’. Depois de um tempo, agora depois de mais de 10 anos da instituição, quando a gente encontra alguém e escuta, deles mesmos, o bem que aquilo representou, eu vejo que sim, vale a pena”, divide Isabela.

Intercâmbio entre favelas

Não foi um Erasmus universitário entre dois países diferentes, foi a oportunidade de conhecer e estudar uma favela do estado vizinho que um dos projetos do Grupo Pensar Cultural ofereceu. Na época, produtos audiovisuais da TV aberta no Brasil retratavam duas das principais favelas brasileiras: o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, e a favela de Paraisópolis, em São Paulo. Rio de Janeiro e São Paulo, apesar de vizinhos, são culturalmente muito diferentes e, não raro, conflitantes. O nome do projeto era “Favela é tudo igual?”.  Andréa Borges, atual presidente do Grupo Pensar Cultural explica: “O objetivo principal era fazer com que os jovens analisassem as duas telenovelas que representavam aquelas favelas e refletir sobre o que era veiculado pelos grandes meios de comunicação e a realidade que eles, de dentro, experimentavam”.

Uma das intercambistas era Sabrina Martina, do Complexo do Alemão, menina negra que tinha acabado de completar 18 anos e ainda estava se descobrindo como artista. Sua mãe, temerosa de que algo acontecesse com a filha durante o período em São Paulo, quis garantir que o grupo se responsabilizaria pelo bem-estar da menina. “Ela foi e brilhou. Eu a acompanhei em outros projetos e tem uns dois meses que ela acabou de lançar o livro dela. Na dedicatória que ela fez para mim, tinha escrito assim: ‘muito obrigada por ter acreditado em mim lá atrás’. Como não acreditar? Era óbvio. Nós demos um empurrãozinho ali no início, mas tudo foi talento dela mesmo”, conta Andréa. Sabrina Martina, hoje MC Martina, é famosa e, só no Instagram, conta com 18,9 mil seguidores.

Passado, presente e futuro

Andréa conta que os projetos vão surgindo organicamente, através das demandas, das necessidades e das oportunidades que aparecem. Além das oficinas de audiovisual, principal carro-chefe do grupo, durante a pandemia uma oficina sobre escrita, envolvendo mulheres da favela, quis mostrar que “pensar a palavra pode ser uma forma de cura”. “Surgiu durante a pandemia, foi online. A gente percebeu que algo precisava ser feito com as mães solteiras que são a maioria na região. São mães solteiras, filhas de outras mães solteiras, gerações de mulheres que abdicaram da própria vida para cuidar dos filhos. O resultado foi muito bonito”, divide Andréa.

Ainda em fase de elaboração, o próximo projeto pretende capacitar os jovens a desenvolver o humor como forma de reflexão e crítica social. “É uma coisa que eles estão buscando muito, e que tá muito na moda com a popularização do Tik Tok”, conta Isabela.

O Grupo Pensar Cultural faz parte, desde 2013, do UniRedes, rede da América Latina e Caribe que busca promover a coesão social através da cultura da fraternidade.

Favela em números

De acordo com pesquisa do Instituto Locomotiva, em parceria com o Data Favela e a Cental Única das Favelas (CUFA), 17,1 milhões de brasileiros moram em favelas no Brasil hoje. Isso corresponde a 8% da população nacional. De acordo com o estudo, 89% das favelas estão dentro de cidades. No Brasil, 55% da população se declara negra, mas, nas favelas, esse número é maior e conta hoje com 67%. Apesar do estigma negativo, de acordo com a CUFA, as favelas movimentam 119,8 bilhões de reais em renda própria por ano, o que é maior do que a renda de países vizinhos como Bolívia, Uruguai ou Paraguai.

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