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“Eu produzia armas, hoje construo a paz”

 
29 março 2022   |   , ,
 
danielkirsch @Pixabay

A história de Vito Alfieri Fontana: das minas antipessoais ao compromisso com a fraternidade.

«Eu sei com certeza que a paz é necessária, porque vi o que é uma guerra.  Experimentei que a empatia às vezes não é suficiente, é necessário agir, arriscar pessoalmente em prol da paz.»

Vito Alfieri Fontana é um rio transbordando; entro em contato com ele por telefone em sua casa de Bari, Itália, para entender melhor por que ainda tem valor falar sobre fraternidade nestes tempos.

Converso sobre isso com ele, pois tem uma história para contar. Hoje é um pai e marido amoroso, aposentado, mesmo que não pare de viajar pela Itália para falar aos jovens, nas escolas, nas associações, a fim de sensibilizá-los para as questões da paz. Justamente ele que, por muitos anos, foi um empreendedor no mundo das armas.

Nestes dias, foi publicado o novo relatório da Rede Europeia contra o Comércio de Armas (ENAAT) e do Instituto Transnacional, que trata sobre o que ele chama de “terceira corrida armamentista”, à qual a União Europeia estaria contribuindo com um montante que, no novo orçamento 2021-2027, aumentou 13 vezes em relação ao anterior.

«É uma escolha que infelizmente leva a pensar que quanto mais armas existem maiores são as chances de que os conflitos aumentem», diz Fontana, que por muitos anos foi titular de uma grande empresa familiar, a Tecnovar, que produzia equipamentos militares e produtos concluídos: minas antipessoais, minas antitanques, granadas, equipamentos para helicópteros. No total, produziu cerca de 4 milhões de minas, das quais 1 milhão e meio eram minas antipessoais, vendidas não apenas para o exército italiano, mas também para países como o Egito, tudo autorizado pela OTAN e pelo governo italiano.

«As minas estão entre as armas mais sórdidas, elas não decidem quem acertar, é suficiente uma simples pressão do pé e a pessoa salta. São instrumentos reais de terror, que danificam todo um território.»  Fontana as produzia, infiltrando-se nas situações de crise mundial, sem muito escrúpulo porque este era simplesmente o seu trabalho.

«De vez em quando chegavam caixas à minha mesa com apenas um sapato, para indicar que o outro tinha explodido, uma maneira de me fazer entender o mal que eu estava cometendo, mas depois das primeiras vezes tudo se tornou normal, como cartões postais com insultos gratuitos contra mim.»

Então foi a inocência de uma criança que deu início à mudança: um dia, seu filho, no banco de trás do carro, encontra folhetos informativos sobre a empresa: “Pai, mas você faz essas coisas? Então você é um assassino!” – diz a ele a criança de apenas 7 anos, mas com ideias muito claras.

«Foi um golpe muito forte, não sei o que aconteceu, mas quando ouvi meu filho dizer que eu era um assassino, uma inquietação começou a se insinuar em mim e, com o tempo, descobri que era uma oportunidade, porque me deu consciência das minhas responsabilidades.»

Começou para Fontana uma trajetória, incentivada pela campanha pela proibição de minas antipessoais, que tomou forma naquele período, no início dos anos 90, juntamente com o encontro com Pax Christi e a experiência do então bispo da cidade de Molfetta, dom Tonino Bello, que Fontana nunca conheceu pessoalmente, mas cujo carisma desempenhou um papel especial em sua conversão humana e espiritual. «Eu percebi pouco a pouco como era sutil a linha entre o fabricante e o traficante de armas. Encontrei pessoas que me estenderam as mãos para que eu mudasse minha vida, e decidi agarrar essa mão.»

A consciência de saber como as coisas eram e de não ter feito nada até aquele momento para prevenir o mal, leva Fontana a fechar a empresa em poucos anos, com uma mudança drástica também de teor econômico para sua família. Ele se encarrega, no entanto, de que os cerca de 90 funcionários restantes possam usufruir dos benefícios sociais da lei.  Mas para ele não é suficiente deixar de produzir o mal. Ele quer fazer mais, ele quer dar um sinal visível de compromisso com a paz. Pelos 17 anos seguintes, em nome da Intersos e das Nações Unidas, ele se torna um dos mais experientes sapadores de minas na área dos Balcãs.  É ele quem coordena na Bósnia, ao lado de outros e arriscando a própria vida, as operações para remover as minas, recuperar o solo e devolver uma terra que tinha se tornado inútil para o povo, a fim de que possa reconstruir sua vida e sua história.

«Uma experiência me marcou muito e me fez entender muitas coisas: a guerra durou três anos, mas para limpar tudo foram necessários vinte anos, e as consequências da guerra contra os povos dos Balcãs ainda são sentidas hoje.  O tempo que leva para destruir é nada, mas para construir é imenso. O que eu vejo nestes dias faz com que eu me senta muito mal, porque sei o que significa para a população ucraniana, e isso me faz gritar o quanto há necessidade de paz.»

Fontana, nos trabalhos de desminagem, foi colega de um homem que tinha perdido uma perna pulando justamente em uma mina. Uma experiência que o fez entender ainda mais o quanto trabalhar juntos ensina a todos que é inútil chorar sobre leite derramado. A história foi por um certo caminho, mas devemos encontrar maneiras de prosseguir, para entrever uma pequena luz no meio de tanta escuridão. «Minha história é essa, não posso fingir que é outra, sofri e sofro pelo que fiz, mas o desafio foi encontrar uma maneira de dar um sentido à minha vivência, aprendendo a me ligar ao outro, mesmo que eu provavelmente tenha feito um mal incrível a esse outro. A partir daí, pode nascer um novo bem que, no meu caso, tornou-se o bem de um povo inteiro, com o qual foi estabelecida uma certa fraternidade, e isso me faz ainda acreditar em uma possibilidade para a raça humana.»

Se eu lhe pergunto o que sente quando vê o telejornal hoje, ele responde falando sobre os vidros das casas: uma explosão destrói o que está nas proximidades, mas também destrói as janelas daquelas casas que não desabam. «Penso não apenas nos mortos e nos que tiveram que ir embora, com as tragédias e crueldades que estão ligadas a essas histórias, mas também naquelas pessoas forçadas a ficar em suas casas semidestruídas, talvez expostas ao frio e ao gelo neste período na Ucrânia, que batem os dentes porque não conseguem ficar aquecidas; penso em quantos vidros seriam necessários para refazer as casas, para oferecer calor.»

Peço-lhe que conclua: A fraternidade também passa por um vidro quebrado? «Sim, se houver coragem de olhar nos olhos um do outro: é isso que os inimigos terão que aprender a fazer quando este terrível conflito acabar. E serão capazes de fazer isso não só se houver oportunidades de trabalho, de reconstrução, mas também se houver a coragem em todos nós de arregaçar as mangas e renunciar a algo de nós mesmos para ir ao encontro das necessidades do outro. Fiz exatamente isso, fechando a minha empresa e começando a trabalhar pela paz, mas é uma experiência que todos nós podemos fazer, pois todos os dias todos nós temos que escolher entre o bem e o mal.»


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