United World Project

Workshop

Pertencemos à Mãe Terra

 
27 agosto 2021   |   , ,
 
Por Maddalena Maltese

Entrevista com o chefe dos Algonquin, Vovô Dominique Rankin, e com a Vovó Marie-Josée Tardif, empenhados na reconciliação com a natureza e com as pessoas.

A floresta é o santuário deles. É o templo onde ressoam canções e orações. É o álbum da família, no qual os ancestrais continuam contando as próprias memórias e falando-lhes à mente e ao coração. É o local da cura. O Vovô Dominique Rankin, um nativo americano da tribo dos Algonquin, concordou em ser entrevistado no coração dos Montes Laurentides, no sul de Quebec, ao norte dos rios São Lourenço e Ottawa. Ele foi acompanhado pela Vovó Marie-Josée Tardif, ex-jornalista e coautora do livro They Called Us Savages (“Eles nos chamaram de selvagens”, ndt).

Ambos trabalham para promover a reconciliação e tornar conhecidas as culturas indígenas a todos os povos.

Eles se refugiaram nas montanhas para tentar entender a descoberta de centenas de corpos de crianças indígenas que o Canadá recentemente encontrou enterrados perto de escolas cristãs. Corpos desaparecidos, uma geração perdida para os povos das Primeiras Nações[1]. “Não quero me expressar em público antes que minha alma seja curada”, explica Dominique, “antes que a paz e o perdão tenham permeado minhas palavras”.

Dominique, ou Kapiteotak (seu nome verdadeiro ao nascer) foi escolhido aos sete anos para substituir o pai como chefe e curandeiro tradicional. Nadou com os castores e dormiu com os ursos, aprendendo com eles a sintonizar seu espírito com a Mãe – “Mamãe” – Terra: o oposto do medo e do distanciamento aprendidos no colégio católico.

Ele dedica sua vida a ensinar a sabedoria dos ancestrais aos membros das Primeiras Nações como uma forma de trazê-los de volta às suas raízes.

Qual é a sua visão da natureza? O que a natureza é para você?

Recebi minha visão dos anciãos da minha família: a floresta é habitada por nossos ancestrais, por espíritos. Não é o paraíso nem o inferno, mas é ali que reside a vida eterna, porque ali estão presentes os espíritos dos seres humanos que a habitaram e os dos animais que habitam nela hoje. A floresta é entremeada por todas essas criaturas.

Na nossa tradição não temos cemitérios: quando uma pessoa morre, nós a levamos para a terra de seus ancestrais. Cremamos o corpo e depositamos as cinzas aos pés das árvores.

Somos atraídos pela natureza também por instinto, porque vemos quantas coisas ela nos dá. Dirigimo-nos a ela, e todas as manhãs quase conseguimos ouvir o grito da Terra: “Ajudem-me!”. A Terra tenta chamar os próprios filhos, mas os filhos não estão mais lá: o espírito deles se foi.

O que significa proteger a Terra, escutar o seu grito?

Esta é uma pergunta incomum para mim. O conceito de proteção é moderno, pois no passado as pessoas viviam em harmonia com a natureza. Os Algonquins se autodenominam Anishinabe, uma palavra que significa “um ser humano em harmonia com a natureza”. Quando você encontra um Anishinabe, encontra um ser humano autêntico, uma pessoa genuína e rica de valores. É um conceito único.

Para nós, um ser humano não pode ser definido sem essa harmonia. Eu tenho um lugar na natureza, assim como os animais têm o deles. Mas o meu não é mais elevado, eu não sou superior: todos fazemos parte da natureza, cada um com seu papel. A Mãe Terra tem um significado muito maior para nós, ela é uma mamãe.

Qual é a contribuição específica que as Primeiras Nações podem oferecer para a salvação do meio ambiente?

Dominique: Tenho uma certa dificuldade com a expressão “salvar o meio ambiente”. Em primeiro lugar, a Mãe Terra não é uma empresa, devemos amá-la muito.

Minha comunidade e eu gostaríamos de trazer pessoas ricas e influentes aqui para a floresta, a fim de que entendam a maneira [certa] de se relacionar com ela. Alguns povos conseguem chegar a Marte ou à Lua, seus cientistas podem fazer qualquer cálculo, mas se forem levados para a floresta, ficam completamente desorientados. Não sabem como conseguir comida, não sabem como se comportar.

Se eu fosse dar aulas em uma universidade, diria aos alunos: “Saiam de casa e venham comigo para a floresta. Vamos de canoa descobrir juntos que os rios são infinitos… Aqui entenderão os obstáculos e aprenderão o que é a vida: só assim é possível “salvar” a floresta. É o nosso modo de salvá-la”.

Marie: É bom que haja ciência no mundo moderno, é justo estar impregnado pelo espírito de conquista. É um bem ter tudo o que o mundo moderno trouxe para nós. No entanto, as Primeiras Nações nos lembram da ligação com a natureza, com a Terra e com os valores que estão desaparecendo.

O mundo moderno gera separação – separação nas relações, com a natureza, com os animais, com o próprio eu autêntico: assim as pessoas se perdem. Tenta preencher o vazio com coisas materiais e as quer cada vez mais. Mas não obtém nenhuma satisfação verdadeira com isso.

Como vocês ajudam as pessoas a desacelerar e a se reconectarem com a natureza?

Dominique: É uma questão de educação e de relacionamento. É preciso aprender que a Mãe Terra não nos pertence: nós pertencemos a ela. Dizemos “Mãe Terra, Pai Céu, Avó Lua, Avô Sol”. Até chamamos as pedras de “avós”. As estrelas são os nossos ancestrais que nos observam.

Quando alguém pergunta a William Commanda, meu guia espiritual de 95 anos, como ele ficou tão sábio, ele responde que a natureza nos ensina algo todos os dias. Veja a tartaruga, por exemplo: ela ensina a viver a vida com calma, a encará-la com tranquilidade quando um obstáculo nos atinge, e a nunca ficar com raiva de ninguém.

Marie: Quando as pessoas vêm visitar uma reserva, muitas vezes se surpreendem porque não esperam tanta tristeza e tantos problemas. Certa vez, uma mulher perguntou a um ancião: “O que aconteceu?”, E ele respondeu: “Meu povo parou de agradecer, esse é o problema”.

Nossos anciãos sabem que todas as manhãs devemos agradecer o dom da vida. A cerimônia da aurora e a oração do final do dia têm sempre esse propósito, agradecer a tudo que está ao nosso redor na natureza. Quando rezamos a oração da gratidão, sentimos que somos uma coisa só, percebemos aquela presença invisível, e que nunca estamos sozinhos.

Vocês já vivenciaram um desafio que deixou sua marca?

Cerca de trinta anos atrás, deixei a floresta de meus ancestrais para passar um mês em uma cidade. Quando voltei, dezesseis quilômetros quadrados haviam sido desmatados e não havia mais animais ou pássaros. Três homens, funcionários de uma gigantesca fábrica de papel da França, atravessaram a floresta enviados pelo chefe da minha comunidade para se encontrarem comigo.

Eu estava furioso com o que havia acontecido e os fiz vivenciarem 15 minutos terríveis. “Vocês vieram matar meus animais? Os espíritos se foram, meus pássaros, meus animais se foram. Talvez alguns dos meus antepassados ​​ passavam por esses caminhos, mas agora eles desapareceram!”, gritei, pensando nas consequências para a minha vida e para as gerações futuras.

“Destruímos muitas florestas e estamos longe da espiritualidade. Para nós, as florestas são negócios”, responderam, “mas agora entendemos, precisamos da sabedoria de vocês”.

Naquele momento comecei a manter aquelas pessoas no meu coração, pensei que talvez estivessem aqui porque precisavam de ajuda.

Vinte e cinco anos depois, recebi um telefonema deles, pedindo que nos encontrássemos novamente. Aceitei e propus a eles uma cerimônia em homenagem às árvores que eles derrubaram, aos animais e aos meus ancestrais que desapareceram.

No final, dei-lhes de presente chifres de rena. Descobri que depois do nosso encontro, vinte e cinco anos atrás, eles haviam fundado o Forest Stewardship Council (Conselho de Gestão Florestal), uma associação para a proteção da floresta. Eles tinham entendido.

Vocês fazem parte do Conselho Mundial das Religiões pela Paz[2]. Acreditam que as pessoas de fé têm uma responsabilidade particular de cuidar do meio ambiente?

Marie: Lemos a encíclica Laudato si‘. O Papa Francisco afirma claramente a necessidade de proteger as Primeiras Nações, porque esses povos são os melhores protetores da Terra. Se quiserem proteger a Terra, protejam-nos. Em 2019, fomos convidados ao Vaticano para participar de um encontro sobre meio ambiente com uma comissão chamada Ética em Ação.

Dominique: Havia estudiosos, cientistas, empresários, cardeais e representantes das Primeiras Nações. Eles imediatamente começaram a falar sobre a agenda do dia, então levantei a mão para dizer que estava surpreso que no Vaticano não começássemos com uma oração.

“Viemos aqui para falar sobre minha Mãe Terra e considero importante começarmos com uma oração”, eu disse.

Então, convidei todas as mulheres a se levantarem e os homens a ficarem em silêncio e olharem as mulheres nos olhos, porque, em nossa tradição, existe uma ligação entre as mulheres e a Terra.

Quando a reunião estava prestes a terminar, pedi para nos colocarmos em círculo de mãos dadas, como se estivéssemos ligados por um cordão umbilical invisível. No final, todos nós ficamos comovidos, porque havíamos despertado a alma das pessoas, e essa é nossa responsabilidade como pessoas religiosas.

[1] Assim são chamadas as comunidades indígenas canadenses.

[2] Rede multirreligiosa internacional formada por um Conselho Mundial de líderes religiosos altamente representativos, por seis organismos inter-religiosos para os diversos continentes e por mais de 90 grupos nacionais.


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